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Niubeishan no Anfiteatro das Montanhas

Ato I – Em trânsito: Leng Qi – Yujin

Depois do Xiaoling me explicar o seu plano num PC de um cyber-café (escrevia em chinês e a internet traduzia para inglês e eu fazia o processo inverso) e de eu mandar uns e-mails a sossegar a minha família, partimos num táxi-mota montanha acima até Yujin (uma pequena aldeia).

Confesso que em certas alturas do percurso tive um certo medo: a mota estava carregadíssima (três pessoas, duas mochilas de campismo e uma mochila pequena), ninguém tinha capacete, a estrada era cheia de curvas, esburacada e tinha pedregulhos nas bermas. À medida que o caminho foi percorrido começaram a surgir árvores com flores de diferentes cores (brancas, cor-de-rosa, amarelas e verdes) entre as quais se deixava adivinhar o vislumbre das neves longínquas e o medo esse, desapareceu, dando lugar ao maravilhamento. 🙂 A aldeia de Yujin encaixa-se bem no meio da montanha e está rodeada com campos de cultivo. Saudaram-nos os rostos sujos e envergonhados das crianças, as anciãs e anciões de cachimbo na boca, as árvores em flor e os picos brancos como pano de fundo, entre eles o todo-poderoso Gongga (7556 m). 

Fomos recebidos por uma família. Com eles jantámos uma maravilhosa comida caseira, fizemos serão, bebemos vinho chinês (50 ºC), fumou-se um cigarro depois do jantar e ouviu-se um ditado chinês: “Um cigarro depois da refeição, sabe a nozes”. 😛 Vi os rostos felizes das pessoas à nossa volta, e mesmo não falando ou percebendo chinês adorei este momento. Nele percebi a importância que as refeições têm neste país. A comida como sinónimo de partilha e convívio, estreita os laços da família e a família na China é a chave de toda a cultura. 😀

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Em trânsito: Chengdu – Leng Qi. Dia D

Este era o dia D, o dia em que me ia encontrar com Xiaoling, embora não soubesse exatamente onde. Quando estava já dentro do autocarro tinha a certeza quase absoluta que tudo ia correr bem, uma vez que o Li pôs o motorista e o Xiaoling ao telefone de forma a combinar o nosso encontro.

A viagem ligou Chengdu a Leng Qi, isto apesar de ter bilhete para Lu Ding. Durante o tempo que durou a viagem (sensivelmente sete horas e meia) aproveitei para escrever no caderno e ao observar a paisagem fui registando o que via: cidades literalmente no meio da vegetação e socalcos de Youcaihua, a planta amarela que está espalhada por toda a província de Sichuan e cujas sementes são utilizadas para fazer óleo de culinária. Quando saímos da auto-estrada a via piorou substancialmente – curvas, buracos, buzinadelas, pessoas a vomitar, o rio e laranjais intermináveis.

Quando cheguei a Leng Qi, o Xiaoling entrou dentro do autocarro para me apanhar e eu saí com ele. 🙂 Foi nesse momento que olhei em volta e vi que estava mesmo numa pequena vila no interior da China profunda.

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Emeishan. Montanha Budista

Ato II – A Descida e Os Macacos

Antes do nascer do sol, acordei e dirigi-me novamente ao Jin Ding – “quem corre por gosto não cansa” – mas a tentativa de ver nascer o astro rei foi novamente frustrada pelo nevoeiro. Não tão intenso como no dia anterior, pois desta feita era possível vislumbrar a enorme estátua de Samantabhadra no topo, mas mesmo assim intenso. De qualquer modo fiquei feliz por observar que as bandeiras colocadas no dia anterior, apesar de congeladas ainda estavam no mesmo local. 🙂

Ao amanhecer

             Detalhe de uma porta

Por volta das 8.00 começámos a descida num bom ritmo, uma vez que durante a tarde tínhamos de apanhar um autocarro para regressar a Chengdu. Às 10.00 já estávamos no “Elephant Bathing Pool” e depois de um engano no caminho que nos levou para uma rota bastante mais longa, tivemos um infeliz encontro com uma das famosas tribos de macacos de Emeishan. :/

Nesse encontro, o Li foi assaltado pelo “rei” que reclamou posse imediata da sua mochila e de todo o seu conteúdo. Durante meia hora assistimos a um espectáculo de destruição e agressividade! :/ E se ao observar as traquinices dos pequenos símios, não pude deixar de os olhar com alguma ternura, o mesmo não posso dizer em relação ao “rei”! Uma vez que em mais de uma ocasião, senti raiva pelo macaco e o meu instinto era claro, apredejá-lo ou dar-lhe uma “coronhada” com um pau! Felizmente para nós, passado esse tempo – que pareceu interminável – o “rei” fartou-se e de todos os itens destruídos, felizmente a máquina fotográfica, o dinheiro e os documentos do Li passaram incólumes.

      

Sem nada a fazer, continuámos o nosso caminho em direção ao Mosteiro do Pico Mágico (1752 m) e ao Venerável Terraço das Árvores (1120 m). Ao longo do percurso observámos a riqueza natural da montanha e dei graças ao engano que nos fez continuar a descobrir toda a beleza da mesma. Antes de chegarmos ao Pavilhão de Qing Yin (710 m) ainda tivemos mais um “date” com macacos, tentando passar por eles sem lhes dar muita importância, algo do género “vocês aí, nós aqui”, mas mesmo assim um macaquito ainda me saltou para as costas/pescoço quando passei por ele. Uns metros mais à frente, finalmente, percebemos que o problema em Emeishan não são os macacos mas as pessoas que lidam com estes: as que tiram fotografias com eles como adornos; as que os alimentam; as que fazem deles um negócio,  habituando-os à presença humana da pior maneira possível. Resultado? Os macacos tornam-se uns autênticos demónios! :/

Serpente      Flores no mosteiro

Já na fase final da descida encontrámos a parte mais descaracterizada e feia da montanha. A montanha humana e a montanha como negócio e comprovámos que se a ascensão for realizada a partir de Wuxiangang (portão mais distante do Jing Ding) é muito mais dura e difícil não sendo possível realizá-la apenas num dia, uma vez que a nossa descida – trinta e quatro quilómetros – foi realizada em sete horas. Quando saímos da montanha, apanhámos mesmo “à pele” um autocarro que estava de partida para Baoguo, a vila do Teddy Bear hotel e onde deixámos os nossos “monstrinhos”.

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Emeishan. Montanha Budista

Ato I – A Ascensão e o Nevoeiro

Antes da partida para um dos portões de acesso à montanha, eu e o Li tomámos um pequeno-almoço reforçado, desta vez uns noodles bem picantes cheios de carninha e umas bolas de milho de massa pastosa muito pegajosa e consistente. Ainda na vila apanhámos um “táxi manhoso“ – nome pelo qual comecei a batizar os carros privados que fazem transporte de pessoas – que ficou ao mesmo preço de um autocarro público para Wannian. 🙂 Esta é a entrada que fica mais próxima do pico de Emeishan e serve quem tem poucos dias para fazer a ascensão e a descida – que era a nossa situação: apenas dois.

A ascensão do Monte Emei começou às 10.00 a partir de Wannian e daí até ao pico, Jin Ding (Pico Dourado) distam trinta e três quilómetros A surpresa inicial foi a vegetação luxuriante e completamente verde que cobria a montanha, ao contrário de Huashan por onde já tinha passado, muito mais árida, rochosa e de faces escarpadas. Para além dessa diferença e enquanto a Huashan era sagrada para os taoístas, Emeishan é uma das quatro montanhas sagradas do Budismo na China e destas a mais elevada.

A primeira parte da ascensão, a chegada ao Mosteiro da Longa Vida, onde almoçámos por volta das 13.00 com direito a passagem pelo templo de Wannian, não se revelou nada problemática. As dificuldades começaram quando iniciámos a subida para a “Elephant Bathing Pool” (2070 m) e daí em diante, primeiro para o “Jien Hall” (2540 m) e seguidamente para o Mosteiro Woyuen – muito próximo – do Jin Ding. Aí sim! A montanha conseguiu revelar todo o seu poder “destrutivo” e “demolidor” quer em distância, quer em grau de dificuldade. :/ As inclinações bastante elevadas durante longos períodos de tempo e algum gelo nos degraus fizeram com que atingisse o meu limite por volta das 16.30-17.00, quando o cansaço físico e mental era elevado e ao bater com biqueira da bota num dos milhares de degraus palmilhados larguei um F*%&-@$ das entranhas, algo como: estou farto de subir, estou farto da “P#$%” desta montanha!

      

Quando chegámos ao pico (3077 m) cerca das 18.00, estava um nevoeiro cerradíssimo e o caminho dourado não era mais do que um jogo de dourados, brancos e cinzas e os doze elefantes que guardavam a escadaria, a estátua do topo (Samantabhadra) e o enorme templo eram praticamente invisíveis. :/ Para além disso e nessa altura começou a nevar e o vento a soprar com intensidade, o que não ajudou em nada a colocação da bandeira e o encerramento do capítulo roubo – consciência – compensação.

     

A descida para o mosteiro onde dormimos e que ficava apenas a quinze minutos do topo, realizou-se já na penumbra total e envolta num mar de nevoeiro. Quando aí chegámos, deparámo-nos com as portas do templo parcialmente fechadas e com o som de cânticos/surdas budistas, ritmadas ao som de tambores e de um sino, que tocava esporadicamente. Após o fim das orações e de uma espera de quarenta e cinco minutos, lá conseguimos colocar as malas no quarto espartano e principalmente lavar e repousar os pés numa tina de madeira com água a ferver. Às 20.30 já estava na caminha, bem durinha por sinal mas bem quentinha, a dormir o merecido sono dos andarilhos. 😀

      

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Teddy Bear Hotel. Comunicação, Conforto e Jantarada

Ainda nesse dia partimos para Emeishan, que fica apenas a quarenta minutos de viagem de Leshan e ficámos alojados no Teddy Bear Hotel. Apesar de apenas termos passado aqui uma noite, este local ficou na memória por diversos motivos, a saber: no nosso quarto dei de caras com um casal de suecos com os quais me “tranquei” na conversa em bom inglês e sem problemas de comunicação; a cama em formato king size e o colchão bastante confortável; a net super rápida e estável e por último mas não menos importante, a bela jantarada chinesa com o Li e com outro rapaz chinês, mais um hóspede do nosso quarto, Lin Wei, que gostava de ser tratado por Xiaoling. Tofu, batatas cortadas muito finas, coelho, porco, arroz e cervejas fizeram parte do repasto. Depois de ter aproveitado para falar com a minha família via skype combinei encontrar-me com o Xiaoling dali a três dias noutro local da província de Sichuan. Desta feita, com o propósito de viajar com ele por uma China mais interior e mais profunda, alterando para isso a minha rota. Em que resultaria tal combinação? Isso, era o que eu desejava saber. 🙂

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Jiuzhaigou, Fairy Tale

Ato III – Silêncio, Roubo e Consciência

O início do segundo dia no parque foi mais relaxado e apenas fiz a minha entrada às 11.00. O meu plano do dia anterior, foi logo morto à nascença e assim que entrei fui encaminhado para a estrada, por uma funcionária que me olhou furiosa porque eu não tinha comprado o bilhete para os autocarros.

      

Passado um quilómetro e meio de ir rente à estrada, uma vez que o trilho estava fechado, vi uma bifurcação e uma placa a anunciar templo e encaminhei-me para lá. Quando cheguei, deparei-me com uma grande área em reconstrução, completamente deserta e silenciosa. 🙂 Estava dado o mote para o que seria o meu dia. Nas traseiras do templo havia um trilho que não estava cortado – suspeito que por esquecimento – e enveredei por aí experimentando o parque numa dimensão totalmente renovada, a dimensão do silêncio. 😀 Durante as restantes horas que passei no seu interior e nos quilómetros palmilhados – algures entre catorze e dezasseis – vi locais que foram uma novidade e outros que foram uma repetição do dia anterior, porém mesmo esses observei-os com outra atenção e de uma outra perspetiva.

      

Apenas parei um pouco, quando me sentei num passadiço com as botas imersas na água que corria e aí comi uma maçã e um chocolate, foi um momento agradável e tranquilo, como todos os momentos desse dia. 🙂

      Passadiço       Na Aldeia...

No caminho de regresso, ainda tive tempo para apanhar um susto com uma cabra  que surgiu do nada no meio do trilho – som de galhos a quebrar no meio da floresta e do silêncio absoluto – e para observar umas bonitas e coloridas bandeiras budistas que estavam no meio da floresta. Porém ao observá-las senti-me tentado a ficar com uma delas e quando dei por mim já tinha cortado a corda inteira – com o meu canivete – e estava pô-las dentro da mochila. Resumindo, estava a roubar! :/ Assim que o fiz, senti-me logo de consciência pesada e arrependido do meu ato e só encontrei um pouco de paz quando passados alguns minutos me  lembrei de uma ação compensatória. Devolver as bandeiras no topo de Emeishan, uma das quatro montanhas sagradas do budismo e um dos meus futuros destinos.

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Huashan a Primeira Montanha

Ato III – O Nascer do Dia, os Chineses e a Ratoeira Dourada

O Nascer do Dia

Acordei às 5.30, ainda de noite com o objetivo de ver nascer o sol e às 6.05 já estava a caminho do Pico Este (2096 m), o qual atingi às 6.20. Durante cinco/dez minutos observei o “terreno” e às 6.30 já estava instalado e pronto para o acontecimento. O sol nasceu algures entre as 6.50 e as 7.00, porém consequência das nuvens, para os espectadores de Huashan, apenas às 7.05 o astro rei se revelou. A partir desse momento e com o passar dos minutos uma luz dourada invadiu progressivamente a face oriental dos Picos Este e Sul, tornando a montanha num local mágico. Durante uma hora andei a passear no Pico Este e nesse tempo fotografei, vi um casal de “doidos” andar junto à beira de penhascos durante 5 minutos (!) :/ e estive no vai não vai para ir ao pavilhão Xia Qi Ting, o qual só é acessível se passarmos um penhasco, com uma corda de rappel.

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Os chineses

Às 8.00, uma vez que a temperatura estava a subir muito rapidamente parei para um mini-striptease e para tomar o pequeno-almoço. Nesse momento conheci dois rapazes chineses de Guangzhou, que escalaram a montanha durante a noite e iriam seguir para Xi´an nessa tarde –  tal como eu. A partir dai ficámos juntos o resto do dia: fomos até ao Pico Sul; mostrei-lhes o exterior das tendas onde dormira, voltei a encontrar as nobres gentes do dia anterior e tirei uma fotografia com/e ao “avô” – que já tinha as minhas luvas postas 😀 e eles foram meus intérpretes num agradecimento com mais palavras; visitámos o escarpado Pico Oeste e começámos a descer a montanha (10.40). Sem nos apercebermos, durante a descida (11.30) fomos levados a seguir o trilho que conduz ao portão Este e a uma ratoeira dourada! Às 14.00 estávamos no portão Este.

     Estou aqui    11

A Ratoeira Dourada

A ratoeira dourada consiste em conduzir as pessoas (durante a descida), para o portão Este, em vez de as conduzir ao portão Oeste. Esta diferença à primeira vista insignificante, conduz as pessoas a um trilho – trilho dos soldados – desinteressante e monótono em que o objectivo é apenas descer degraus! :/ Porém a questão principal nem é essa e se fosse, já era grave! Uma vez que impede as pessoas de ver a verdadeira beleza da montanha durante a descida e no caso de alguns infelizes também na subida. O cerne da questão é que o portão Este fica a oito quilómetros do centro da pequena cidade de Huayin (华阴市), da estação de autocarros, da estação de comboios… enfim fica longe de tudo! E nesse momento, se as pessoas não tiverem carro – a grande maioria – é obrigada a apanhar um mini autocarro para regressar. Ou seja, sem o desejarem as pessoas são conduzidas a uma ratoeira da qual não conseguem escapar! 😦

Podíamos pensar, que ninguém é realmente obrigado a apanhar esse mini autocarro. Errado! A estrada que conduz ao centro de Huayin (华阴市) não tem bermas para peões e está cheia de curvas e contra-curvas, tornando-se um verdadeiro perigo para eventuais caminhadas! Toda esta questão, que eu considero abusiva por parte do parque natural, ganha requintes de ESCÂNDALO, quando no autocarro – operado por uma empresa independente – de regresso a Xi´an (西安) se pode ler um ALERTA  – em mandarim – que as pessoas que apresentarem o bilhete de entrada no parque natural antes de entrar nesse mini autocarro – todas as pessoas o têm – não teriam de pagar o bilhete do mesmo. Porém esta informação não existe em nenhum lugar, a não ser… já no interior de um autocarro que nos leva de regresso à grande urbe. Ou seja, o parque natural e a empresa de autocarros andam a encher os bolsos à conta das pessoas, por sonegação de informação. É legal? É…mas que não passa de um mais um esquema made in China, disso não restam dúvidas!

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Huashan a Primeira Montanha

Ato II – A Nobreza das Pobres Gentes

Quando entrei na tenda, estava um radiador em forma de parabólica ligado e dois homens descalços a aquecer os pés. O meu anfitrião pronunciou algumas palavras para os restantes e entretanto apontaram-me um lugar para me sentar e pousar a mochila, enquanto vários pares de olhos me olhavam com curiosidade. Dentro da tenda o espaço era rectangular e alto, a temperatura era agradável (fruto do radiador e do calor humano) e havia algum fumo. Para além disso, fora construída uma plataforma elevada em madeira e contraplacados em forma de U invertido que servia para manter as pessoas afastadas do solo enlameado e gelado. Esta plataforma estava cheia de edredons, sacos de viagem, ferramentas e pessoas sentadas ou deitadas a esfumaçar, a jogar às cartas ou pura e simplesmente silenciosas. Existia ainda, nesta plataforma uma subdivisão feita com outros painéis e panos de tenda, tal e qual uma segunda mini tenda.

Enquanto estava sentado fui dizendo várias vezes xìe xìe (obrigado) e apontei para mim e disse Putaoya (Portugal), entretanto já tinha tirado do bolso do softshel as notas que tinha comigo (cerca de 80Y) e passei-as para as mãos de um deles, que as passou para as mãos de outro e sempre a acenarem que não com a cabeça, foram passando as notas de mão em mão até elas me serem todas entregues. Nesta altura senti-me comovido com a nobreza das pobres gentes.

Ofereceram-me então uma garrafa da qual bebi uns goles para aquecer a garganta e para matar o bicho e tirei da mochila a comida para o jantar. Depois de a oferecer aos presentes (ninguém aceitou) comecei a comer com satisfação e apetite. Terminado o repasto, comecei a rearrumar a mochila e a tirar peças de roupa à vez: gorros, luvas, meias, polar, camisola e calças térmicas que fui mostrando às pessoas (sabendo que eram gente pobre) para ver se alguém aceitava alguma coisa. De tudo o que mostrei apenas aceitaram umas luvas polares, nada mais quiseram! Toda esta situação, comoveu-me. A generosidade, a simplicidade, a honestidade destas pessoas. Após a mostra de roupa ofereceram-me cigarros, mais álcool e fizeram-me uma cama com roupa que lá tinham, resumindo… Deram-me tudo o que tinham, sem esperar nada em troca e foram o espelho perfeito da bondade e da nobreza de carácter. 😀

Antes de nos deitarmos para dormir cerca das 21.30, ainda deu para: perceber o motivo de existência da mini-tenda (havia um casal entre os presentes); ver as luvas a serem entregues ao trabalhador mais velhinho (meio-dente e que fumava cachimbo); ver os passos de dança de um chinês mais extrovertido, ao som de um telemóvel 🙂 ; observar jogos de cartas; fumaradas; notar que as várias pessoas utilizavam o mesmo telemóvel (possivelmente para contactarem com a família); entender que aquelas pessoas eram trabalhadores da construção civil.

Adormeci pensado na minha felicidade e boa sorte. Adormeci a pensar que mesmo que a vida seja bastante dura, apesar da necessidade, da privação, das condições em que cada um trava a sua luta diária, da pobreza… o carácter, o bom carácter pode estar sempre bem presente e vivo na vida das pessoas… é ele que nos torna verdadeiramente nobres. 😀

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Huashan a Primeira Montanha

Ato I – A Ascensão e a Procura

A ascensão da montanha iniciou-se por volta do meio dia e os primeiros quatro quilómetros foram bastante simples e sem dificuldades de maior. Destacando-se os templos e altares taoístas em que fui entrado e os malabarismos de um chinês no topo de um rochedo – há gente muuuuuuuito marada! :/ Após esses momentos de passeio e lazer e a partir do momento em que apareceram os primeiros cadeados com fitas vermelhas – representação simbólica dos desejos das pessoas – presos nas correntes laterais – correntes essas que nos auxiliam na ascensão e nos separam da zona dos penhascos – começaram as dificuldades em Huashan.

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Às 14.00 estava a almoçar na companhia de uma árvore milenar nas traseiras de um templo taoísta 🙂 e às 14.35 a subida complicou-se exponencialmente com seções de inclinações absolutamente diabólicas – Thousand foot Precipice e Hundred foot Crevice. Às 16.00 estava oficialmente no topo do Pico Norte – podia ter chegado antes, mas decidi percorrer uns trilhos alternativos para conhecer mais facetas da montanha – e nessa altura posso dizer que estava verdadeiramente FELIZ por ter chegado ao primeiro pico de Huashan e por ter a oportunidade de ver algo belo depois de o ter conquistado.

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Reflexão: Os montanhistas, alpinistas e praticantes de trekking devem experienciar algo semelhante e quanto maior o esforço ou a provação, maior esse sentimento.


O Pico Norte tem uma altitude de 1614 m e é o anfiteatro de eleição para os restantes quatro picos. Sim! Huashan é uma montanha de cinco picos: Norte, Sul, Este, Oeste e Central. O Pico Norte foi o primeiro a ser conquistado e aí acabei de almoçar aproveitando para descansar um pouco antes de recomeçar a ascensão, o que aconteceu por volta da hora coca-cola light. Nesta altura, porque o tempo estava super-agradável e porque via a quantidade de roupa quente que ainda tinha na mochila, comecei a pensar seriamente em dormir ao relento, nalgum lugar abrigado e o mais próximo possível do Pico Este (local de excelência para ver o nascer do sol na montanha). 🙂

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Às 17.00 estava na base do Jin Sue Guan, a seção que liga o Pico Norte à entrada para os restantes picos principais e posso afirmar que este trecho não é nenhuma pêra doce e que puxa pelo nosso corpo e mente. Cinquenta minutos depois estava no Pico Central (2037 m) e vinte minutos volvidos, cerca das 18.10 atingi o Pico Oeste (2082 m), do qual avistava a face do Pico Sul iluminada pela bela luz dourada do pôr do sol. 😀 Uns momentos antes desse belo acontecimento encontrei um americano e um neozelandês com que estive uns minutos à conversa e comecei a sentir-me desanimado relativamente à possibilidade de dormir ao relento (falaram do vento, do frio – temperaturas que podiam atingir os graus negativos… 😦 ) e comecei a olhar ainda com mais atenção para possíveis abrigos, notando que em alguns locais ainda existia neve.

Às 18.37 já estava a caminho do Pico Sul, o mais elevado da montanha (2155 m) o qual atingi já ao cair da noite, só para tirar a fotografia da praxe (no dia seguinte podia voltar mais calmamente). Quando comecei a descer do Pico Sul em direção ao Pico Este já as luzes dos trilhos da montanha estavam ligadas e iluminavam na medida do possível os degraus. Entretanto, continuava à procura de um abrigo, equacionando várias possibilidades, entre elas ficar num templo que estava a ser reconstruído…quando a meio da descida me deparei com duas grandes tendas.

Instantaneamente parei e comecei a vasculhar a mochila à procura de um papel (escrito em caracteres) que tinha a pergunta: “Quanto $ pela estadia?”. Nesse momento, saiu um homem da tenda e eu fiz-lhe sinal para esperar (enquanto continuava a minha procura pelo papel). O homem ficou completamente imóvel a olhar para mim, enquanto eu tirava papéis, papéis, papéis, papéis… mais pápeis e finalmente passados quatro minutos interminavéis lá achei o tal papel. 🙂 Ao mostrar-lho ele fez-me sinal para entrar com ele para dentro da tenda